O segundo episódio de Lovecraft Country começa de uma forma completamente inesperada; após os eventos de “Sundown”, era de se esperar que Atticus, seu tio George e Letitia estivessem em estado de choque diante dos horrores que presenciaram, mas o que vemos é o oposto. Música alegre, dança, luxo, George empolgado com inúmeros livros, Letitia com um guarda-roupa repleto de roupas magníficas, nenhum dos dois parecendo se preocupar com o que ocorreu.
A questão é que nem George e nem Letitia se lembram dos monstros que os atacaram na floresta (humanos e não humanos), estão sob efeito de um feitiço poderoso. Apenas Atticus se recorda e ele se esforça para que seu tio e sua amiga também consigam, embora seus esforços sejam em vão.
Cercados por presentes de luxo, de repente, como mágica, esquecem dos monstros do passado; uma metáfora poderosa logo no princípio, e não será a única.
A mansão em que se encontram é na realidade uma hospedagem, pertencente a Samuel Braithwhite, homem que, ficaremos sabendo mais tarde, pretende realizar um ritual que abrirá um portal para o Jardim do Éden, quando o homem era imortal, conseguindo assim, a vida eterna.
A religião está fortemente presente neste episódio, principalmente na figura de Adão, Eva e o Paraíso, como no versículo bíblico citado, gênesis 2:19 – “O Senhor fez da terra todos os animais do campo, e todas as aves do céu, e os levou até Adão para ver que nome daria a eles. E o nome que Adão desse a cada ser vivo seria o nome pelo qual seria chamado”
Adão, que em praticamente todas as imagens em que é retratado, é branco, mas que, segundo a Bíblia, ao lado de Eva, deu origem à toda a humanidade, sejam brancos, negros, orientais ou indígenas.
E já que estamos falando em Jardim do Éden, Adão, Eva e o pecado original, a serpente que engana a mulher e a condena a ser a taxada como sedutora e responsável pela queda do paraíso, não está no inferno, mas nas calças do homem.
Voltando para o mundo atual e seus pecados, Samuel lidera uma seita e Atticus, é filho do fundador dela com uma escrava, seu sangue, portanto, carrega imenso poder e pode ser útil na realização da magia que abrirá o portal.
Se no primeiro episódio o elemento sobrenatural demorou a dar as caras, ficando o medo por conta dos humanos monstros, dessa vez a magia não demora a surgir e de forma nada sutil.
Através dela, os ricos membros da seita observam e são entretidos pelo trio de protagonistas lidando com seus sonhos e pesadelos transformados em “realidade”. Nenhum deles esboça qualquer emoção ao assisti-los, continuam a conversar como se nada estivesse acontecendo.
O pai de Atticus, finalmente encontrado, deixa claro que seu sequestro foi a forma que Braithwhite encontrou para atrai-lo até o vilarejo de Ardham e poder utiliza-lo para seus propósitos.
Para que o homem branco adentre as portas do paraíso e alcance a imortalidade, será necessário sacrificar o homem negro.
E com Atticus caminhando para o local onde ocorrerá o ritual, Lovecraft Country nos revela o poema “O Branco está na Lua” (que dá nome ao episódio) na voz de seu criador Gil Scott-Heron, músico e poeta falecido em 2011, conhecido por suas críticas ferozes aos meios de comunicação, ao consumismo e à uma sociedade que se perdia em entretenimento fútil enquanto ignorava os problemas sociais ao seu redor:
Tenho um poema. Ele se chama “O branco está na Lua” e foi inspirado em uns brancos na Lua. Só queria dar crédito a eles. Muito bem. Vamos lá:
Um rato mordeu minha irmã Nell, enquanto o branco foi à Lua.
O rosto e o braço dela incharam enquanto o branco foi à Lua.
Não posso pagar contas médicas, mas o branco foi à Lua.
Daqui à dez anos, estarei pagando, enquanto o branco foi à Lua.
Sabe, aumentaram meu aluguel ontem a noite, porque o branco foi à Lua.
Sem água quente, nem banheiro, nem luz, mas o branco foi à Lua.
Por que fez isso comigo? Porque o branco foi à Lua.
Eu já pagava $50 por semana e agora o branco foi à Lua.
Os impostos comem todo o meu salário, os drogados me deixam nervoso, o preço da comida aumenta, e como se não fosse o bastante, um rato mordeu minha irmã Nell, enquanto o branco foi à Lua.
O rosto e o braço dela incharam, enquanto o branco foi à Lua.
A grana que ganhei ano passado foi para o branco ir à Lua?
Por que não temos dinheiro aqui? E o branco foi à Lua?
Eu já estou de saco cheio de o branco ter ido à Lua.
Acho que enviarei as contas médicas pelo correio especial, para o branco lá na Lua.
Não é necessário dizer muito mais, em 1969, Neil Armstrong pisou na Lua e foi imortalizado, um passo pequeno para um homem, um salto gigante para a humanidade, enquanto uma parte da população, a maioria negra, não tinha acesso à saúde ou condições dignas de vida.
Não me leve a mal, sou fascinado pela ciência e pelos avanços proporcionados, mas é impossível não compreender a razão pela qual Scott-Heron não comemorou com entusiasmo a Missão Apollo 11.
Pelo menos, no episódio 02 de Lovecraft Country, não foi permitido ao homem retornar ao paraíso, ainda existem muitos pecados para serem expirados.
Talvez o mais surpreendente de “Whitey´s on The Moon” tenha sido que a trama que esperávamos ser estendida até os últimos episódios, ter sido solucionada, ou, pelo menos assim é o que parece, abrindo a possibilidade de novos rumos na série.
Não sei o que está por vir, mas espero que continue a ser um soco no estômago.
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Fernando Fontana é escritor e adulto amador, autor de “Deus, o Diabo e os Super-Heróis no País da Corrupção” e da Graphic Novel “O Triste Destino da Namorada do Ultra-Homem”, é criador deste site e colaborador do Canal Metalinguagem, onde escreve sobre quadrinhos e filmes antigos.