O Senhor Milagre, ou Scott Free é filho do Pai Celestial e um dos deuses de Nova Gênese, casado com a Grande Barda, na Terra tornou-se famoso como o maior de todos os escapistas e um super-herói que já fez parte da Liga da Justiça Internacional.
O Senhor Milagre é o retrato do sucesso; o Senhor Milagre tem a vida que muitos sonhariam ter; o Senhor Milagre aparece na TV e os fãs querem tirar fotos com ele; o Senhor Milagre está deprimido; o Senhor Milagre quer morrer; o Senhor Milagre cortou os próprios pulsos.
Sim, você abre a primeira edição de Senhor Milagre, escrito por Tom King, e se depara com uma página dupla, com Scott Free, sentado no chão de seu banheiro e com os pulsos cortados.
Uma cena forte, que já deixa claro que você está diante de uma história que foge do convencional, e não tem absolutamente nada a ver com o personagem que alguns se acostumaram a ver na Liga da Justiça de Keith Giffen, ou melhor, talvez parte da genialidade seja justamente isso, talvez tenha tudo a ver, pois pessoas podem aparentar estarem felizes quando por dentro estão desmoronando.
Não é a primeira vez que King reinterpreta um personagem, ele já havia feito isso na excelente minissérie Visão, e agora, escolhe o Senhor Milagre para falar sobre depressão.
Scott Free é perfeito para o tema, uma vez que carrega uma série de traumas a serem explorados, como o fato dele ter sido trocado pelo Pai Celestial por Órion, filho de Darkseid, o senhor de Apokolips, planeta com o qual Nova Gênese trava uma guerra perpétua.
Essa troca tinha por objetivo gerar uma trégua entre os dois planetas, mas enquanto Órion foi recebido em Nova Gênese e criado como filho do Pai Celestial, O Senhor Milagre foi enviado para Apokolips, um dos mais inóspitos planetas do universo, e criado pela Vovó Bondade (nome irônico para uma mulher extremamente cruel), onde sofreu todo tipo de violência e abuso, até conseguir fugir.
Após tentar se matar, questionado sobre o que o motivou a praticar tal ato, Free diz que tentou escapar da maior das armadilhas, a Morte! Trata-se claramente do oposto, o Senhor Milagre, doente, estava tentando escapar da própria vida.
A arte de Mitch Gerads enche os olhos e ao mesmo tempo utiliza recursos para transmitir o sentimento da depressão, como as páginas divididas em nove quadros, lembrando uma prisão e uma rotina que domina o personagem. Além disso, percebemos que durante toda a história, em diversas ocasiões, há uma espécie de “ruído”, de distorção da imagem.
Uma das características da depressão é a distorção da percepção e da realidade, ela faz com que pessoas enxerguem a si mesmos e ao mundo como piores do que realmente são.
Durante a história, também surge constantemente um quadrinho negro com a frase “Darkseid é.” O Senhor de Apokolips, que deveria ter sido pai adotivo de Scott Free, é a ideia fixa, o pensamento negativo recorrente, intrometendo-se em cada momento.
Na quinta edição, Scott e Barda estão sentados na praia e conversam sobre o filósofo Descartes e sua visão de Deus. Este diálogo é incrível e ilumina o que de fato Darkseid é.
Os diálogos também são um dos pontos fortes deste quadrinho, como na edição em que Órion confronta e julga o Senhor Milagre, o obrigando a responder as perguntas apenas com verdadeiro ou falso. O leitor consegue sentir a tensão, o desespero e, principalmente o ódio aumentar até o limite da ruptura.
Roteiro e arte nos levam a perceber o cansaço não apenas físico, mas psicológico do personagem; Scott precisa lidar com suas obrigações como um dos generais de Nova Gênese, sua profissão como escapista, e seu relacionamento com Barda e com a família, e o que vemos é seu esgotamento.
Sua depressão afeta não apenas ele, mas as pessoas ao seu redor, incluindo sua esposa, a Grande Barda, que tenta imaginar qual sua parcela de culpa na profunda tristeza pela qual passa o marido.
Enfim, esta obra escrita por Tom King e ilustrada por Mitch Gerads merece todos os elogios que vem recebendo da crítica e do público.
É uma das melhores coisas que eu li recentemente, e uma prova de que quando bons roteiristas desfrutam de liberdade criativa, o resultado costuma ser muito superior às chamadas revistas de linha, quando estão presos à cronologia e pelos limites impostos pela editora.
Vale lembrar que, como dito acima, a HQ retrata temas complexos como depressão e tentativa de suicídio, logo, definitivamente não é para todas as idades ou pessoas.
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Fernando Fontana é escritor e adulto amador, autor de “Deus, o Diabo e os Super-heróis no País da Corrupção” e da Graphic Novel “O Triste Destino da Namorada do Ultra Homem”, é criador deste site e colaborador do Canal Metalinguagem, onde escreve sobre quadrinhos e filmes antigos