O texto a seguir contém spoilers e muito sangue, siga por sua conta e risco
No penúltimo episódio de Lovecraft Country, “Rewind 1921”, a HBO nos levou a testemunhar mais uma vez o tenebroso episódio da história norte-americana chamado Massacre de Tulsa; durante toda a série, vimos o que era ser negro nos Estados Unidos da América, o terror real e por isso infinitamente mais assustador do que o Lovecraftiano, de ser espancado ou morto em seu próprio país, onde cavaleiros trajando vestes brancas queimam cruzes e enforcam inocentes tendo como única motivação a cor da sua pele.
Isso me faz recordar o discurso do deus africano Anansi, ou simplesmente Mr. Nancy, interpretado por Orlando Jones, na série “Deuses Americanos”, baseada na obra de Neil Gaiman:
Deixem eu contar uma história. Era uma vez um homem que se ferrou. Que tal isso para história? Porque é essa a história dos negros na América. Vocês ainda não sabem que são negros. Vocês acham que são apenas pessoas. Me deixem ser o primeiro a dizer que todos vocês são negros. No momento em que esses holandeses filhos da puta puseram os pés aqui e decidiram que eram brancos, e que vocês eram negros, e esse é o nome simpático que eles usam para chamar vocês. Me deixe pintar uma imagem daquilo que está esperando por vocês na praia. Vocês chegam à América, terra de oportunidade, leite e mel, e adivinhem? Vocês todos vão ser escravos. Divididos, vendidos e trabalhando até a morte. Os mais sortudos vão ter domingo para descansar, foder e fazer mais escravos, e tudo para quê? Para algodão? Índigo? Para a porcaria de uma camisa roxa? A única boa notícia é que o tabaco que vossos netos vão cultivar de graça vai dar uma porrada de câncer a esses filhos da puta brancos. E eu nem comecei ainda. 100 anos depois, vocês estão fodidos. 100 anos depois disso. Fodidos. 100 anos depois de estarem livres, vocês ainda estarão sendo fodidos em trabalhos e mortos pela polícia.
Mr. Nancy
Fica fácil compreender a razão pela qual Hanna (Joaquina Kalukango) ao encontrar-se com Atticus (Jonathan Majors), seu descendente, em seu local seguro para os ancestrais, diga que aprendeu a não temer as chamas que envolviam o local e que elas eram sua raiva se manifestando; raiva, que assim como a magia, não deve ser temida, mas abraçada, controlada e direcionada.
Hanna, que em suas aparições, está envolvida pelo fogo e segura o Livro dos Nomes, posteriormente lacrado por ela com um feitiço, para que o sofrimento que ele causou, não recaísse sobre seus descendentes.
Não foi por acaso que o Livro dos Nomes, tão procurado, tenha sido localizado justamente em Tulsa, em um retorno ao passado, pois o massacre lá ocorrido foi durante muito tempo esquecido pelos norte-americanos, e o que o Livro representa é justamente isso, a memória ancestral, o passado, que deve ser lembrado para que não se repita.
Reabrir feridas pode ser doloroso, mas muitas vezes necessário! Apagar o passado só é útil para aqueles que dele se beneficiaram.
É neste mesmo ambiente onírico, espaço seguro para os ancestrais, que Atticus tem um reencontro emocionante com sua mãe, e em seu colo, diz que não quer morrer. A resposta dela, ao contrário do que poderia se esperar, é que sacrifícios precisam ser feitos, e que se não nos sacrificamos por algo importante, nossa vida de nada vale.
Para Atticus, o que há de mais importante é sua família, seu pai, Montrose (Michael K. Willians), sua tia Hippolyta (Aunjanue L. Ellis), Dee (Jada Harris), e principalmente, Letitia (Jurnee Smollett) e seu filho George, que está para nascer..
Os ancestrais ajudam a remover a maldição de Dee, e ensinam para Letitia o feitiço que lhe permitirá enfrentar Christina (Abbey Lee Kershaw). Caberá a Atticus também lutar por sua família, seu filho e todos aqueles que estão para nascer.
Estes temas, família e sacrifício, percorrem todo o episódio final. Temos Atticus se reencontrando com Ji-Ah (Jamie Chung) e reconhecendo que a conexão que ambos possuem faz deles uma família; Letitia se encontrando com sua irmã, Ruby (Wunmi Mosaku) em frente ao túmulo de sua mãe, e dizendo que família não é obrigação, mas sim aceitação, estar disposta a sacrificar tudo para protege-la, logo, ainda que nas entrelinhas, a intenção passa a ser muito mais importante do que o sangue.
Então, quando chegamos ao clímax, com Christina banhada no sangue de um Atticus crucificado, completando o feitiço que teoricamente a tornará imortal, e Letitia a confronta, ainda que com a ajuda de Ji-Ah, que une os corpos de Atticus e Christina, é a intenção que prevalece ao outro elemento da magia, o sangue.
O feitiço ensinado pelos ancestrais e o sacrifício de Atticus não salvou apenas todos os descendentes de sua família, mas todos os descendentes de todas as famílias negras, ao selar a possibilidade de brancos utilizarem a magia.
A mensagem de Atticus para seu pai, também revela a disposição de uma nova vida para Montrose e seu neto: “Não existe felicidade ou tristeza no mundo, existe apenas a comparação de um estado com o outro. Só quem padece de sofrimento extremo, é capaz de usufruir da felicidade suprema…as sábias palavras de Dumas são o meu desejo para você. Felicidade suprema. Ensine ao meu filho novas maneiras de viver em vez de repetir o que nós passamos”.
Por outro lado, o final em que Dee, com o braço substituído por um implante cibernético (sim, isso é Lovecraft Country, feitiços, monstros, viagens no tempo e braços cibernéticos), mata Christina, logo após dizer: “eles ainda não aprenderam”, revela um ódio ainda forte e presente contra aqueles que lhe fizeram mal, e a incapacidade de perdoar.
A última cena é justamente Dee e um dos monstros lovecraftianos que está sob seu controle, urrando diante da Lua, demonstrando que o terror pode ter se voltado contra aqueles que o praticaram.
Lovecraft Country conclui sua jornada com episódios que surpreenderam por sempre abordarem temas diferentes uns dos outros, indo de casas mal assombradas e maldições, a viagens no tempo, com o foco no terror e no racismo, inegavelmente presentes na obra de Lovecraft.
Ainda que com diferenças entre a série e o livro homônimo que lhe deu origem, ela mantém suas metáforas poderosas e relevantes em roteiros bem escritos, dá protagonismo em um momento ou outro para todos os seus personagens e se junta a Watchmen como mais uma obra de arte da HBO e fortíssima candidata aos prêmios de 2021.
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Fernando Fontana é escritor e adulto amador, autor de “Deus, o Diabo e os Super-heróis no País da Corrupção” e da Graphic Novel “O Triste Destino da Namorada do Ultra Homem”, é criador deste site e colaborador do Canal Metalinguagem, onde escreve sobre quadrinhos e filmes antigos